sábado, 30 de abril de 2011

Deixem Jesus fora disso!

A figura de Cristo nunca esteve tão em evidência. Todas as ideologias querem-no como seu garoto propaganda. E assim, Sua mensagem vai se adequando à agenda política de cada grupo.

Não se trata de um fenômeno recente. O próprio Império Romano, através de Constantino, quis associar-se à imagem de Cristo. De repente, o carpinteiro de Nazaré latinizou-se, vestiu toga romana, e teve Suas palavras usadas para justificar as investidas imperiais. Sua cruz passou a ser estampada nos escudos dos soldados. “Por este sinal vencerás!” teria ouvido o imperador numa visão. A mesma cruz estampou os peitorais e escudos dos soldados que lutaram nas Cruzadas, sob o comando do Papa, sob o pretexto de se combater o avanço do Islã e recuperar territórios perdidos. À época, o pontífice romano abonou a morte de qualquer seguidor de Maomé, desde que fosse “pela causa da Santa Igreja”. Foi esta mesma cruz que estampou as velas dos navios dos conquistadores das Américas, que dizimaram povos indígenas, e pilharam impérios milenares supostamente em nome dos interesses da Cristandade.

Nem Adolf Hitler abriu mão de associar sua ideologia à imagem e mensagem de Cristo. Confira abaixo algumas de suas frases acerca da fé cristã. O Führer demonstrava acreditar que o cristianismo era “a fundação inabalável da moral e do código moral da nação”. Dizia, ainda, que o Governo do Reich estava decidido a empreender a purificação moral e política da vida pública alemã, criando e assegurando as condições necessárias para uma renovação profunda da vida religiosa. “Como cristão”, dizia Hitler, “tenho a obrigação de lutar pela justiça e justiça”. Justificando a sua pérfida luta contra os judeus, ocasionando na morte de cerca de 6 milhões deles, ele teria dito: “Hoje acredito que estou agindo de acordo com a vontade do Criador Todo-Poderoso: – ao defender-me contra os judeus, estou lutando pelo trabalho do Senhor. ” Ele se considerava um escolhido de Deus, para iniciar no mundo um período de mil anos de paz, conhecido entre os cristãos como o Milênio. Um dos símbolos usados pelo nazismo era… adivinha? A cruz. A chamada “Cruz de Ferro” também era usada como adorno em escudos e espadas dos Cavaleiros Templários.

Deu no que deu… Milhões de mortos em nome de um nacionalismo estúpido e cego.

A figura de Jesus não cabe dentro de qualquer arranjo ideológico. Sua mensagem transcende as utopias, subverte o establishment e desafia o mais insólito dos ideais humanos.

Tentar domesticá-lO é perda de tempo.

Ele não Se presta a ser garoto propaganda do socialismo, tampouco do capitalismo. Também não é cabo eleitoral de candidatura alguma. Não ousem conferir tom partidário à Sua mensagem. E duvido que Ele se prestasse a empunhar uma bandeira étnica ou homofóbica. Ele tem Sua própria agenda.

Toda vez que Sua mensagem é diluída numa ideologia qualquer, perde sua essência e eficácia.

Jesus não é nacionalista, nem comunista, nem cubano, nem americano, nem romano, ou mesmo brasileiro, como temos o costume de dizer. Ele é Deus! Rei dos reis, Senhor dos senhores. Os regimes políticos, bem como as ideologias que os justificam tendem a corromper-se, mas os ideais do Reino de Deus permanecem para sempre.

O Evangelho segue seu fluxo pela História. Regimes tentaram represá-lo. Outros acharam que podiam encaná-lo. Outros quiseram engarrafá-lo. Mas ele segue sua própria calha, ora morro acima, ora morro abaixo, ora na superfície, ora no subterrâneo, ora caudaloso e rebelde, ora manso e tranquilo.

Cada sistema lidou com o Evangelho da maneira como lhe foi conveniente. Governos totalitaristas tentaram enjaulá-lo. Democracias procuram amansá-lo e, às vezes, levá-lo ao picadeiro para ridicularizá-lo. Alguns preferiram encerrá-lo no Museu, alegando ser coisa do passado. Mas nenhum pode ficar indiferente à sua subversividade latente.

Não queiram canonizar Karl Marx, nem beatificar Max Weber. Mas também não os demonizem. Qualquer tipo de extremismo é perigoso, pois cega o discernimento. Não comprem pacotes fechados. Atendamos à recomendação de Paulo: "Examinai tudo. Retende o bem" (1 Ts. 5:21). Mesmo da boca do mais perverso dentre os homens, podemos, eventualmente, ouvir algo que edifique. Assim como da boca do mais santo dentre eles, pode-se ouvir palavras destruidoras. O mesmo Pedro que ouviu de Jesus que sua confissão fora inspirada pelo Espírito de Deus, minutos depois foi repreendido por emprestar seus lábios ao maligno para dissuadir Jesus do cumprimento de Sua missão.

Algumas ideologias acertam em seu diagnóstico, mas prescrevem o remédio errado, e vice-versa. Daí o risco de associar a mensagem de Jesus a qualquer que seja a ideologia. Se falharem, será a credibilidade do Evangelho que estará em xeque.

Recentemente, o jornalista americano Joseph Lelyveld lançou uma biografia de Mahatma Gandhi em que diz que o líder indiano era gay e abandonou sua mulher para viver um tórrido romance com o arquiteto alemão de origem judaica Hermann Kalleubach. Pode ser que isso seja verdade, como pode ser que seja apenas sensacionalismo barato para alavancar as vendas do livro. De qualquer maneira, não será isso que impedirá que eu continue admirando o homem que conduziu a Índia à independência, e que é considerado o pai do pacifismo. Tenho aprendido a separar as coisas...

Tenho profunda admiração por alguns ícones da nossa história, independente do credo que confessavam, ou da ideologia que defendiam. Posso admirar seus ideais, sem com isso ser obrigado a aderir à sua ideologia. Todos esses eram pecadores, tanto quanto eu. O fato de admirá-los não significa que devo construir-lhes um altar em meu coração. O único a ocupar esta posição é Cristo. Admiro qualquer ser humano naquilo em que mais se parecem com Jesus.

Hermes C. Fernandes

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Vigiar e Punir, O Panóptico de Michel Foucault

punição e a vigilância são poderes destinados a educar (adestrar) as pessoas para que essas cumpram normas, leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder. A vigilância é uma maneira de se observar à pessoa, se esta está realmente cumprindo com todos seus deveres – é um poder que atinge os corpos dos indivíduos, seus gestos, seus discursos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. A vigilância tem como função evitar que algo contrário ao poder aconteça e busca regulamentar a vida das pessoas para que estas exerçam suas atividades. Já a punição é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder e ela também é o meio ilidir que essas pessoas cometam condutas puníveis (através da punição as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder). A vigilância e a punição podem ser encontradas em várias entidades estatais, como hospitais, prisões e escolas. Foi criado até um sistema chamado panoptico para facilitar nessa vigilância, nesse sistema haveria uma torre central a qual avistaria, vigiaria todos de uma só vez que estão a sua volta já que essa estrutura a volta da torre central era circular. “O panóptico de Jeremy Bentham é uma composição arquitetônica de cunho coercitivo e disciplinatório: possui o formato de um anel onde fica a construção à periferia, dividida em celas tendo ao centro uma torre com duas vastas janelas que se abrem ao seu interior e outra única para o exterior permitindo que a luz atravesse a cela de lado...” (Michel Foucault - Micro-Física do Poder) A relação entre vigiar e punir está no fato de que com ela seria possível “adestrar” as pessoas para que estas exercessem suas tarefas como bons cidadãos, evitar o máximo que as pessoas infringissem as normas estabelecidas pelo poder, estas idéias podem ser retiradas do livro “VIGIAR E PUNIR”. Segundo Foucault para economia do poder seria mais rentável e mais eficaz vigiar do que punir. Isso pode ser facilmente observado se pegarmos o panoptismo como exemplo, pois é muito mais barato vigiarmos as pessoas para que estas não infrinjam as leis, do que posteriormente puni-las, pois na punição terá que ser gasto muito dinheiro para que a pessoa que infringiu a lei seja resociabilizada (reeducado). Além disso, com o sistema panóptico a vigilância fica ainda mais fácil, já que é possível vigiar várias pessoas ao mesmo tempo e com a punição para que esta alcance mesmo seu objetivo ela tem que ser aplicada de maneira individual – pois cada um tem uma maneira diferente de serem reeducado e resociabilizado. Ainda podemos dizer que a vigilância ganhou espaço na economia do poder, pois é muito mais fácil vigiar as pessoas para ver se estas estão mesmo cumprindo suas funções, e com o panoptismo isso fica ainda mais fácil principalmente nas entidades como nos hospitais e nas escolas, do que vir a puni-las caso cometam algum erro.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Frei Carlos Mesters fez uma longa entrevista com o Apóstolo Paulo

Antes da entrevista Frei Mesters faz uma introdução. Diz ele:

O objetivo deste subsídio é abrir uma porta de entrada para a vida do apóstolo Paulo e, assim, oferecer uma chave de leitura para as cartas que ele escreveu.

É uma porta em forma de entrevista que procura fornecer a ficha completa do apóstolo. Serve como exercício. Formulamos uma série de 40 perguntas e procuramos as respostas na própria Bíblia e nas informações que temos do contexto daquele tempo, tanto judaico como helenista-romano.

As perguntas que fizemos revelam apenas alguns aspectos da vida de Paulo. Outras perguntas poderão revelar outros aspectos da sua vida e da vida das comunidades daquele tempo.


As respostas são dadas na terceira pessoa e não na primeira pessoa de ``Eu, Paulo'', como se esperaria numa entrevista. É por dois motivos: 1. Não tive coragem; 2. Respondendo na primeira pessoa, fica mais difícil relativizar as conclusões ainda incertas da pesquisa histórica em torno da vida de Paulo. Pois nem tudo é certo e claro. Há vários pontos obscuros que não passam de hipóteses.

Existe uma discussão entre os exegetas sobre a autenticidade de várias cartas que a Bíblia atribui ao apóstolo Paulo. Elas não seriam de Paulo, mas de um discípulo de Paulo. Para a finalidade desta breve entrevista achamos não ser necessário discutir esta questão difícil.

Tomamos as cartas da maneira como aparecem na Bíblia. Um estudo mais aprofundado, porém, não poderá ignorar a questão da autenticidade. A dúvida se alguma carta é ou não é de Paulo não diminui em nada o seu valor como palavra inspirada de Deus.

A entrevista imaginária é feita depois da primeira prisão de Paulo em Roma, pouco antes da sua morte, quando ele estava com mais ou menos 63 anos de idade.

Uma entrevista com o Apóstolo Paulo

I Parte

1. Qual é o seu nome?

O primeiro nome é Shaúl ou Saulo (At 7,58), o que significa, ``implorado'', ``desejado''. Naquele tempo, além do primeiro nome em hebraico ou aramaico, era costume ter um segundo nome latinizado ou helenista. O segundo nome era Paulo (At 13,9). É este o nome que ele prefere e usa em todas as suas cartas. Outros exemplos de nome duplo: João Marcos (At 12,12; 15,37), José Barsabas Justo (At 1,23), Simeão Niger (At 13,1), Tabita Dorcas (At 9,36).

2. Quando você nasceu?

Paulo deve ter nascido em torno do ano 5 da nossa era. Pois, quando escreveu a carta para o amigo Filemon, ele já se considerava ``velho'' (Fm 9). Velho, conforme os padrões daquele tempo, era a pessoa que tinha além dos 55 anos de idade. A carta para Filemon foi escrita quando Paulo estava na prisão (Fm 9), provavelmente na primeira prisão romana que durou dois anos, de 58 até 60. Deduzindo os 55 anos de 60, se obtém o ano 5. Como se vê, o cálculo da idade e da cronologia de Paulo depende de muitas conjeturas.

3. Você nasceu aonde?

Paulo nasceu em Tarso na Cilícia da Ásia Menor (At 9,11; 21,39; 22,3; cf. 9,30; 11,25). Tarso ficava a uns quinze quilômetros do Mar Mediterrâneo, perto da embocadura do Rio Cidno que, pouco antes de entrar no mar, formava um grande lago. Tarso era uma cidade enorme. Conforme os cálculos feitos por alguns historiadores, tinha cerca de 300 mil habitantes. Ela possuía um porto muito ativo, de grande movimento. A estrada romana que fazia a ligação entre o Oriente e o Ocidente passava por lá. Tarso era também um importante centro de cultura. Foi ainda em Tarso que o imperador Marco Antônio viu pela primeira vez a Cleópatra (38 a .C.), fato que mudou a história do império romano. Ao sul, a cidade se abria para o mar. Para o norte, ela se espremia ao pé da serra, chamada Taurus, que subia até três mil metros de altura.

4. Sendo judeu, como é que você foi nascer numa cidade helenista? A sua família é de lá ou migrou para lá?

São Jerônimo (séc. IV) conservou uma tradição antiga conforme a qual Paulo teria nascido em Giscala, na Galiléia. Esta tradição não pode ser verdadeira, pois contradiz a afirmação de Lucas nos Atos dos Apóstolos, onde Paulo diz: ``Nasci em Tarso'' (At 22,3). Mas ela pode ter um fundo de verdade. É provável que a família de Paulo tenha a sua origem na Galiléia e tenha migrado de lá para Tarso bem antes do nascimento de Paulo. Naquele tempo, a migração de Judeus da Palestina para as cidades costeiras do Mar Mediterrâneo era muito comum, desde o quinto século antes de Cristo. Em todas elas havia comunidades judaicas bem organizadas que, juntas, formavam a assim chamada diáspora. Havia uma comunicação muito intensa entre as comunidades da diáspora e a cidade de Jerusalém que era o centro espiritual de todos os judeus.

Assim se entende como Paulo, nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém (At 22,3; 26,4-5) e como ele tinha uma irmã casada que morava em Jerusalém (At 23,16). Ele mesmo diz: ``O que foi minha vida desde minha juventude e como desde o início vivi no meio da minha nação, em Jerusalém mesmo, sabem-no todos os judeus'' (At 26,4).

5. Quais os estudos que você fez, aonde e com quem?

Conforme os costumes judeus da época, Paulo deve ter recebido a sua formação básica como judeu, primeiro, na casa dos pais e, em seguida, na sinagoga local de Tarso e na escola ligada à sinagoga. A formação básica comum dos judeus compreendia: aprender a ler e escrever; o estudo da lei e da história povo''; a transmissão da sabedoria da vida e das tradições religiosas; aprendizagem das orações. O método era: pergunta e resposta; repetir e decorar; insistência na disciplina e na convivência. Além disso, ainda em Tarso, ele deve ter aprendido a cultura grega que ele conhecia e usava (cf. At 17,28).Além desta formação básica, Paulo recebeu uma formação superior em Jerusalém. Desde a sua juventude, estudou aos pés de Gamaliel, neto e discípulo do célebre doutor Hillel (At 22,3). Ele mesmo confessa que foi um aluno aplicado e esforçado (Fm 3,6).

6. Você se formou como rabino, doutor da lei?

Quais os cursos?Naquele tempo, não havia cursos como hoje. Havia os grandes mestres que reuniam ao seu redor um grupo de discípulos. Na época de Paulo, isto é, no primeiro século, ainda não havia uma graduação oficial para alguém poder usar o título de rabino ou doutor da lei. Isto só aconteceu a partir da reunião de Yabne, realizada em torno do ano 90 d.C. Naquela assembléia, os rabinos da linha dos fariseus estabeleceram as condições para alguém poder ser admitido e reconhecido como rabino. Paulo nunca usou o título de Rabino, e nunca foi chamado como tal. Por isso, é pouco provável que ele tenha estudado para se formar como rabino ou doutor da lei. No entanto, o conhecimento de que ele dá provas nas suas cartas, mostra que, mesmo não sendo rabino oficial, possuía uma sólida formação teológica, igual à dos rabinos.

O estudo superior abrangia as seguintes matérias: 1. Estudo da Lei, a Tora, através de leituras freqüentes, até conhecê-la de cor. 2. Estudo da Halaká, isto é, da Tradição dos Antigos. A Halaká procurava regulamentar a vida do povo de acordo com a Lei. Era a assim chamada Tradição Oral que tinha tanto valor e autoridade quanto o texto escrito da Lei. Paulo estudou a Halaká dos fariseus e não a dos saduceus (cf. Fm 3,5; At 23,6-8). 3. Estudo da Hagadá, isto é, das histórias do passado, descritas na Bíblia. A maneira que se usava para lembrar e contar as histórias do passado capacitava o aluno a ler os fatos do seu tempo à luz da fé. 4. As regras do Midrash, isto é, da interpretação da Bíblia. Midrash significa busca, do verbo darash - buscar. Indica a busca do sentido que a Sagrada Escritura tem para a vida do povo e das pessoas.

7. Quais as suas leituras preferidas?

Qual o significado que a Bíblia tem para você?A leitura preferida de Paulo era, sem dúvida, a ``Sagrada Escritura'', aprendida ``desde criança'', conforme o costume do povo judeu da época (2Tm 3,15). Da Sagrada Escritura ele tirava ``a sabedoria que conduz à salvação pela féem Jesus Cristo' ' (2Tm 3,15). Tirava ``ensinamento'', ``perseverança e consolação'', ``esperança'' (Rm 15,4). Ele se considerava destinatário daqueles escritos antigos: ``Foram escritos para a nossa instrução, nós que tocamos o fim dos tempos'' (1Cor 10,11). Ele acreditava que o Espírito de Deus agia sobre o povo através da Escritura Sagrada: ``Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra'' (2Tm 3,16-17).

Naquele tempo, a Sagrada Escritura compreendia só os livros que hoje pertencem ao Antigo Testamento, pois o Novo Testamento ainda não existia como escrito. Por ora, existia só como comunidade nova, que comunicava vida nova e olhar novo. O escrito do Novo Testamento estava sendo feito.

A expressão Antigo Testamento vem do próprio Paulo (2Cor 3,14). Era uma maneira nova de indicar a Bíblia, que deve ter desagradado aos irmãos judeus. Para Paulo, o Antigo se tornava Novo através da vida nova e do olhar novo, nascidos da conversão para Cristo na comunidade (cf. 2Cor 3,16). Paulo lia e interpretava os livros do Antigo Testamento a partir deste novo olhar. Não parava na ``letra que mata'', mas buscava o ``Espírito que comunica vida'' (2Cor 3,6). Procurava descobrir (darash - midrash) como toda a história antiga estava orientada por Deus para encontrar em Cristo e na comunidade o seu verdadeiro e definitivo sentido: ``Todas as promessas de Deus encontram nele o seu SIM!'' (2Cor 1,20) ``Tudo foi escrito para nós que tocamos o fim dos tempos'' (1Cor 10,11).

8. Você tem alguma obra escrita?

Qual?Paulo não escreveu nenhum livro, nenhum tratado, nenhuma ``epístola'' (entendida como obra literária em forma de carta, dirigida a um público anônimo), mas escreveu algumas cartas para as comunidades e para os companheiros de caminhada. As cartas tratam de assuntos e problemas bem concretos da vida das comunidades e das pessoas.

No geral, Paulo segue o esquena normal das cartas daquela época: apresentação do autor e dos destinatários, saudação inicial, etc. Geralmente ele ditava as cartas a um secretário (cf. Rm 16,22) e, no fim, as assinava de próprio punho (2Ts 3,17; Gl 6,11; 1Cor 16,21; Cl 4,18; Fm 19). Parece que só a carta para Filemon foi escrita inteiramente pelo próprio Paulo, sem a ajuda de um secretário.

Na maioria das vezes, Paulo não escrevia sozinho, mas junto com os companheiros de missão que aparecem ao lado dele na saudação inicial ou nas lembranças finais das cartas (Rm 16,21-23: 1Cor 1,1; 16,19; 2Cor 1,1; Gl 1,2; Fm 1,1; 4,21; Cl 1,1; 4,10-13; 2Ts 1,1; 3Ts 1,1; 2Tm 4,21; Fm 1 e 23).

9. Além dos estudos que fez, você aprendeu alguma profissão?

Qual e por quê?Paulo tinha a profissão de fabricante de tendas e de outros objetos de couro (At 18,3). Alguns exegetas acham que ele tenha aprendido esta profissão durante a sua estadia em Jerusalém, enquanto estudava aos pés de Gamaliel. Pois, assim dizem, o ideal do bom rabino era ter uma profissão e viver do próprio trabalho. Neste caso, a profissão e o trabalho teriam um papel apenas secundário na vida de Paulo. O importante seria o fato de ele ser rabino ou doutor. Mas, como já vimos, ao que tudo indica, Paulo não estudou para ser rabino ou doutor. Nem é certo que este ideal de rabino já existisse assim no primeiro século. E como ainda veremos, a profissão e o trabalho tinham um papel não secundário, mas central na vida de Paulo.

O mais provável é que ele, como todo menino daquele tempo, tanto do mundo grego como do mundo judeu, tenha aprendido a profissão do próprio pai, isto é, lá mesmo em Tarso. Aprofissão era uma característica da família. Passava de pai para filho. O aprendizado na oficina do pai começava aos 13 anos de idade e durava dois ou três anos. O menino tinha que trabalhar de sol a sol, obedecendo a uma disciplina muito rígida. Ele aprendia a profissão do pai ou para ter um meio de vida ou para se capacitar na condução dos negócios como sucessor do pai. Isto dependia do tamanho da fortuna e do negócio do pai.

10. Seu pai era rico?

Tinha grandes negócios?Paulo fazia questão de dizer que era ``Cidadão de Tarso'' (At 21,39) e ``Cidadão de Roma'' (At 16,37; 22,25) e que tinha este direito não porque o comprou, mas por nascimento (At 22,28). Com outras palavras, recebeu-o do pai. Isto quer dizer que o pai de Paulo não era pobre. Pelo contrário, era da elite da cidade, pois chegou a apropriar-se do direito de ``Cidadão de Roma'' a ponto de poder passá-lo para os filhos!

Alguns intérpretes acham que o pai de Paulo, sendo fabricante de tendas, tenha produzido tendas para o exército romano que precisava delas para as suas numerosas expedições militares. Assim eles explicam como ele, sendo judeu, possa ter recebido o título de ``Cidadão de Roma'' como um direito hereditário.

Deste modo, é provável que Paulo tenha aprendido a profissão de fabricante de tendas, não tanto para ter um meio de sobrevivência através do trabalho, mas muito mais para poder suceder o pai na condução dos negócios. A conversão para Cristo, porém modificou todos estes planos!

II Parte

11. Paulo, de que maneira a conversão para Cristo modificou seus planos?
Como Cidadão de Tarso, Cidadão de Roma, aluno de Gamaliel com formação superior, criado e formado muito provavelmente para tomar conta da oficina do pai, Paulo pertencia à elite da sociedade daquele tempo. Tinha diante de si um grande futuro e a possibilidade real de uma brilhante carreira. Mas a entrada de Cristo na sua vida modificou tudo isto!
Ele mesmo diz: ``Por causa dele perdi tudo e tenho tudo como esterco para poder ganhar a Cristo e ser achado nele!' (Fil 3,8) ``O que era lucro, eu o tive como perda, por amor a Cristo!'' (Fil 3,7).
Perdeu tudo! Qual o tudo que ele perdeu?Uma parte do tudo que perdeu era o seguinte: a entrada de Cristo na sua vida o tirou de uma posição na sociedade e o colocou em outra, bem inferior. Paulo mudou de classe. Em vez de empregador, dono de uma oficina com seus empregados e escravos, acabou sendo ele mesmo um empregado, um trabalhador assalariado com aspecto de escravo, que mal e mal ganhava o suficiente para poder sobreviver e que dependia da solidariedade dos amigos para não morrer de fome (2Cor 11,9; 2Ts 3,8).
A conversão para Cristo era um lado da medalha. O outro lado era a sua identificação cada vez maior com os pobres, os assalariados, os escravos.

12. Explique-se melhor: depois de convertido para Cristo, o que foi que você fez da profissão que aprendeu? Chegou a exercê-la? Como arrumava emprego?
A entrada de Cristo na sua vida criou para Paulo uma situação nova e diferente, em que ele foi obrigado a buscar uma outra maneira de sobreviver. De um lado, como que de repente, Paulo foi cortado da comunidade judaica, perdeu o círculo de amizades que tinha e deve ter perdido também sua clientela no meio dos judeus, pois eles chegaram ao ponto de querer matá-lo (At 9,23). De outro lado, vivendo na nova comunidade dos cristãos, Paulo foi enviado para a missão (At 13,2-3) e, durante mais de 14 anos, levou uma vida de missionário ambulante, sem domicílio, sem oficina e sem clientela fixa. Como sobreviver nestas condições?
Como missionário ambulante, havia várias alternativas de sobrevivência, de acordo com o costume dos professores, filósofos e missionários ambulantes da época: havia alguns destes professores que impunham um preço pelo ensino que davam; outros, mas bem poucos, viviam de esmolas que eles pediam nas praças; a maioria, porém, se instalava em alguma casa de família de gente mais rica, como professor particular dos filhos, e lá eles viviam, sem trabalhar com as mãos, como filhos da casa, dependendo em tudo da família e recebendo dela até alguma ajuda em dinheiro.

Ora, Paulo, por uma questão de princípio, não aceitou nenhuma destas três alternativas: embora reconhecesse aos outros o direito de receber um salário (1Cor 9,14-15), ele mesmo fazia questão de não aceitar um salário pelo ensino que dava, pois queria anunciar o evangelho de graça (1Cor 9,17-18); não aceitava esmola nem ajuda para si, a não ser de uma única comunidade (Fil 4,15); não queria depender da comunidade nem ser peso para ela (1Ts 2,9; 2Ts 3,7-9; 2Cor 12,13-14).

Paulo escolheu uma quarta alternativa: trabalhar com as próprias mãos (1Cor 4,12). E neste ponto lhe foi de muito proveito a profissão que aprendeu, mas com uma grande diferença: aprendeu a profissão como filho de pai influente e rico, e acabou por exercê-la como operário necessitado, obrigado pelas circunstâncias duras da vida a procurar um emprego nas oficinas perto do mercado das grandes cidadesCícero, célebre orador e senador romano, dizia: ``Uma oficina não tem nada que possa beneficiar um homem livre''. Por isso, para um homem livre como Paulo, não era fácil conseguir um emprego. Em geral, as grandes oficinas empregavam só escravos por serem mais baratos. Quando um homem livre procurava trabalho em alguma oficina, ele fazia algo que o humilhava. Foi o que aconteceu com Paulo. Ele escreve com certa ironia: ``Terá sido falta minha anunciar-vos gratuitamente o evangelho, humilhando-me a mim mesmo para vos exaltar?'' (2Cor 11,7). Procurando emprego nestas condições, Paulo assumia a condição de um escravo: ``Mesmo sendo livre, fiz-me escravo de todos'' (1Cor 9,19).

13. Por que você insiste tanto no valor do ``trabalho com as próprias mãos''?
Na sociedade helenista, trabalhar com as próprias mãos era visto como um trabalho próprio de escravo e impróprio para um homem livre. O ideal dos gregos era uma vida intelectual sem trabalho manual. Daí que os outros missionários, filósofos e professores ambulantes, cultivando o ideal da época, não trabalhavam com as mãos e eram sustentados pela comunidade. A comunidade, por sua vez, os acolhia de bom grado, pois via neles um símbolo do ideal que todos queriam atingir. Embora alimentado por todos e para todos, este ideal era viável apenas para uma pequena elite.

Paulo rompe com o ideal cultivado pela sociedade e pela cultura helenista. Pois ele insiste em querer sustentar-se através do trabalho manual: “Vocês sabem como devem imitar-nos: nós não ficamos sem fazer nada quando estivemos entre vocês, nem pedimos a ninguém o pão que comemos; pelo contrário, trabalhamos com fadiga e esforço, noite e dia, para não sermos um peso para nenhum de vocês. Não porque não tivéssemos direito a isso, mas porque nós quisemos ser um exemplo para vocês imitarem'' (2Ts 3,7-10).

Apresentando-se ao povo como um missionário que vive do trabalho de suas próprias mãos, ele faz com que o evangelho entre por uma porta diferente, provoque uma ruptura na vida do povo e lhe apresente um novo ideal de vida. Ele diz: ``Empenhem a sua honra em levar uma vida tranqüila, ocupando-se das suas próprias coisas e trabalhando com as próprias mãos. Assim levarão uma vida honrada aos olhos dos de fora e não passarão mais necessidade de coisa alguma'' (1Ts 4,11-12). Como entender o alcance deste texto?

Apresentando-se ao povo como um missionário que vive do trabalho de suas próprias mãos, ele faz com que o evangelho entre por uma porta diferente, provoque uma ruptura na vida do povo e lhe apresente um novo ideal de vida. Ele diz: ``Empenhem a sua honra em levar uma vida tranqüila, ocupando-se das suas próprias coisas e trabalhando com as próprias mãos. Assim levarão uma vida honrada aos olhos dos de fora e não passarão mais necessidade de coisa alguma'' (1Ts 4,11-12). Como entender o alcance deste texto?

Paulo deu o exemplo (1Ts 2,9; 2Ts 3,7-9; At 20,34-35; 1Cor 4,12). Ele era um homem livre que não precisava trabalhar como um escravo. Como missionário ambulante, ele podia ser sustentado pela comunidade, e a comunidade o aceitaria de bom grado. Mas ele recusou este direito (1Cor 9,15). Fez questão de trabalhar com as próprias mãos. Deste modo, ajudava os irmãos pobres a quebrar a ideologia dominante e a perceber onde estava a fonte da verdadeira honradez. E foi exatamente neste ponto que Paulo recebeu os maiores ataques dos outros missionários que não chegavam a entender a sua atitude e que pensavam mais de acordo com a ideologia dominante (1Cor 9,1-18; 2Cor 11,7-15).

Resumindo: o trabalho ocupa um lugar central na vida de Paulo. Através do trabalho, ele se tornou um exemplo vivo e ajudava as comunidades a compreender que era precisamente na sua condição de trabalhadores e escravos que estava a base para se poder criar uma situação nova em que o povo já não passasse necessidade.

14. Qual o seu salário? Dá para viver? Tem outra fonte de renda?

Ao que tudo indica, o salário de Paulo não deve ter sido alto, pois ele tinha que trabalhar ``dia e noite'' para poder viver sem depender dos outros (1Ts 2,9; 2Ts 3,8). Ele fala de cansaço, provocado pelo trabalho manual (1Cor 4,12), e de ``vigílias'', (isto é, horas-extras) (2Cor 6,5; 11,27). Mas mesmo fazendo vigílias, ele passava necessidade (2Cor 11,9). Não tinha dinheiro nem para comprar comida e roupa, pois ele fala de fome e nudez (2Cor 11,27). Vivia como um ``indigente'' (2Cor 6,10).

Um dos motivos do salário insuficiente é o fato de Paulo estar sempre viajando e não ter um domicílio fixo. Por isso, não conseguia montar uma oficina própria com clientela estável, nem criar um nome de bom profissional que pudesse atrair os compradores de tendas e de outros artigos de couro. Na maioria dos lugares por onde passou, ele deve ter vivido de algum emprego, conseguido numa das oficinas que costumavam ficar perto do mercado.
Em Corinto, teve a sorte de ter encontrado Áquila e Priscila, em cuja oficina conseguiu um emprego (At 18,3). Em Éfeso, onde passou três anos, ao que parece, não teve tanta sorte, pois de lá escrevia aos coríntios: ``Fatigamo-nos trabalhando com as próprias mãos'' (1Cor 4,12). Ainda em Éfeso, Paulo ``ensinava diariamente na escola de um tal Tiranos'' (At 19,9). Um texto variante, conservado no assim chamado ``textus occidentalis'', diz que o ensinamento diário era feito ``entre a quinta e a décima hora'', isto é, entre 11 da manhã e 4 da tarde, ou seja, durante a hora do almoço e do descanso. O resto do tempo, ele tinha que trabalhar na oficina, desde cedo da manhã até tarde da noite (1Ts 2,9; 2Ts 3,8).

Outras fontes de renda ele não tinha, a não ser uma ajuda que recebia só da comunidade de Filipos (Fil 4,15; 2Cor 11,8-9). Quando necessário, ele sabia fazer coleta e pedir dinheiro, não para si, mas para os outros, os pobres de Jerusalém. Realizava, assim, a partilha (1Cor 16,1-4).

15. E o que você fez com o seu direito de cidadão? Como você participa da vida pública da sua cidade? Como exerce os seus direitos?

Como Cidadão de Roma, Paulo gozava de alguns privilégios: não podia ser flagelado, não podia ser crucificado, podia apelar para o Supremo Tribunal em Roma, para César. De vez em quando, ele recorria a estes privilégios: em Filipos, quando foi preso e flagelado sem forma de processo (At 16,37); em Jerusalém, quando o centurião romano quis flagelá-lo (At 22,25); em Ce saréia, quando corria perigo de ser entregue na mão dos judeus e por eles ser assassinado (At 25,3.11).

Como Cidadão de Tarso, Paulo fazia parte da elite da cidade. Cidadão era todo aquele que era reconhecido oficialmente como membro da Cidade. Só os Cidadãos de uma cidade eram considerados povo (dèmos) daquela cidade, e só os cidadãos é que podiam participar dasassembléias, onde se tomavam as decisões com relação ao destino da cidade. Este tipo de organização se chamava demo (povo) - cracia (governo). Mas por mais que dissessem que era ``governo do povo'', o povo mesmo não participava, pois não participavam os escravos e os libertos, nem os assim chamados ``peregrinos'', isto é, moradores, estrangeiros, gente que veio de fora. Participava só uma pequena elite.

Não temos notícia da participação efetiva e direta de Paulo na vida política ou pública da sua cidade. Mas o que sabemos é que ele participava ativamente na vida e na organização da comunidade a que pertencia. Por exemplo, antes da conversão, ele chegou a ser delegado oficial do Sinédrio para Damasco (At 9,1-2). O exegeta J. Murphy O'Connor acha que Paulo foi membro do Sinédrio, isto é, do Supremo Tribunal da comunidade judaica. Depois da sua conversão, Paulo participava intensamente da vida das comunidades cristãs a ponto de ser indicado como responsável pela evangelização entre os pagãos (Gl 2,7-9).

16. Quais as funções e tarefas que você já exerceu na sua vida?
Sendo homem de participação ativa, Paulo recebeu e exerceu muitas tarefas e funções. Sinal de que era uma pessoa com qualidades de liderança. Percorrendo rapidamente os Atos dos Apóstolos e as cartas, consegui encontrar dez tarefas ou funções de que Paulo foi incumbido.

Uma leitura mais atenta poderá descobrir outras. Eis a lista:
1. Testemunha auxiliar no apedrejamento de Estêvão (At 7,58; 8,1); 2. Provavelmente, membro do Sinédrio, isto é, do Supremo Tribunal de Jerusalém; 3. Emissário do Sinédrio para Damasco em vista da perseguição aos cristãos (At 9,2; 22,5; 26,12); 4. Delegado da comunidade de Antioquia para Jerusalém (At 11,30); 5. Delegado da mesma comunidade de Antioquia para a missão em Chipre e na Ásia Menor (At 13,2-3); 6. Delegado dos cristãos convertidos do paganismo para o Concílio Ecumênico de Jerusalém (At 15,2); 7. Delegado oficial do Concílio junto às comunidades cristãs do mundo pagão (At 15,22.25); 8. Responsável oficial pela evangelização dos pagãos (Gl 2,7-9); 9. Organizador e portador da grande coleta, feita nas comunidades cristãs do mundo pagão em benefício dos pobres de Jerusalém, imitando assim o costume judeu dos dízimos e da ligação estreita com a Igreja-Mãe (Gl 2,10; Rm 15,25-28; 2Cor 8-9; 1Cor 16,1-4; At 24,17); 10. A tarefa mais importante: ``Ai de mim!, se eu não anunciar o Evangelho!'' (1Cor 9,16).

17. Você que viajou tanto, quais os países que visitou e qual o seu domicílio atual?
Naquele tempo não havia países como hoje. Havia o grande império romano que era como um mosaico enorme, feito de reinos, povos, cidades, tribos. Cada pedrinha do mosaico mantinha a sua autonomia relativa e suas próprias leis, mas todas juntas estavam integradas e organizadas dentro dos interesses comuns do grande império, a saber: pagar os impostos e as taxas; não fazer guerras entre si; fornecer soldados para o exército romano; reconhecer a autoridade divina do imperador.

Por este império imenso Paulo andou, viajando por mar e por terra. Andou pelas estradas imperiais, a pé, ao todo mais de 15 mil quilômetros!Pelo que se sabe, de todas as épocas da antigüidade, a época em que Paulo vivia era a mais propícia para viajar. Em 63 a .C., pouco antes de invadir a Palestina, o general romano Pompeu tinha derrotado e eliminado os piratas que tornavam perigosas as viagens pelo Mar Mediterrâneo. Em 31 a .C., após a vitória de Octaviano sobre Marco Antônio, tinha começado a Pax Romana que favorecia a tranqüilidade nas estradas. Havia estradas boas, consertadas regularmente e mantidas em bom estado de conservação. Cada 30 quilômetros (um dia de viagem), costumava haver uma hospedaria que oferecia segurança aos viajantes contra os ladrões e outros perigos.

Ora, os cristãos souberam utilizar esta rede de estradas para a difusão do Evangelho. Eles viajavam muito entre as várias cidades. Estabeleceu-se uma rede de comunicação entre as comunidades. Vale a pena você passar o pente pelos Atos dos Apóstolos e pelas Cartas de Paulo e fazer um levantamento minucioso das viagens dos primeiros cristãos: quem viajava; de onde para onde; com que meios; por que estradas; com que finalidade; etc.
Paulo nasceu em Tarso na Cilícia da Ásia Menor, criou-se em Jerusalém na Palestina, foi enviado a Damasco na Síria. Depois da sua conversão andou pela Arábia. Passando por Jerusalém, voltou para Tarso e, alguns anos depois, veio morar na comunidade de Antioquia na Síria. De lá foi enviado para a missão e, junto com os companheiros, andou por muitas regiões, sem parar: Chipre, Panfília, Pisídia, Licaônia, Galácia, Mísia, Macedônia, Acáia, Grécia, etc. Passou pela Ásia e entrou para a Europa. Andou de navio pelo Mar Mediterrâneo e foi até Malta e Roma. Tinha projeto de viajar até a Espanha.

O domicílio natural de Paulo era Tarso. Mas depois que tomou consciência da sua missão, não teve mais domicílio fixo. Era um peregrino sem repouso. Vivia em canto nenhum, e se sentia em casa em todo canto (1Cor 4,11).

18. Como é que você faz para se comunicar com tanta gente difrente? Quantas línguas você fala e onde as aprendeu?

Paulo falava o grego (At 21,37), aprendido em Tarso, sua cidade natal, e escrevia corretamente, como o comprovam as suas cartas. O grego era a língua comum (koinè) do comércio e do império, como o inglês hoje em dia. Era a língua do povo das cidades.

Paulo falava também o hebraico (At 21,40; 26,14), língua na qual foi escrita a maior parte do Antigo Testamento e que se usava quase exclusivamente na celebração da palavra nas sinagogas. Falava ainda o aramaico que era a língua falada pelo povo da Palestina. Não se sabe se ele falava também o latim dos romanos de Roma.

19. Você tem algum problema de comunicação? Como o resolve?

Paulo deve ter tido muitos problemas de comunicação por causa da grande variedade de línguas faladas pelos diferentes povos do império romano. Ele falava em grego, mas nem todos os ouvintes entendiam o grego. Seria como falar em português aos índios do interior de Roraima. Nem todos os índios entendem o português.

Assim, na região dos gálatas, no centro da Ásia Menor, a língua materna do povo era o dialeto gálico, língua parecida com o francês. Fazia pouco tempo que os gálatas tinham migrado da Europa para aquela região da Ásia Menor. Muitos deles não entendiam nada do grego de Paulo. Paulo resolvia o problema da falta de comunicação com gestos e desenhos. Pois ele lembra na carta: ``Diante de vocês foi desenhada a imagem de Jesus crucificado'' (Gl 3,1).

Mas nem sempre resolvia o problema com tanta facilidade. Certa vez, em Listra na Licaônia da Ásia Menor, depois da cura de um paralítico por Paulo e Barnabé, o povo exclamou: ``Deuses em forma humana vieram até nós!'' (At 14,11) O povo falava em língua licaônica que Paulo não entendia. Por isso não percebeu que o povo estava querendo prestar-lhe um culto divino e oferecer-lhe um bezerro como sacrifício de louvor e ação de graças. Foi um equívoco muito desagradável. Provavelmente, foi por meio de um intérprete que conseguiram desfazer o equívoco. (At 14,14.18).

III Parte

20. Qual a sua nacionalidade? Mudou alguma vez?

Naquele tempo não era como hoje. Hoje em dia, a nacionalidade de alguém tem a ver com a sua pertença a uma nação-estado que concede ou nega cidadania e passaporte aos seus membros. Naquele tempo, a nacionalidade tinha a ver com a pertença da pessoa a uma nação-raça. Ou seja, Paulo, apesar de ser natural de uma cidade helenista na Ásia Menor, conservava a consciência muito clara de ser da raça de Israel (Fm 3,5), descendente de Abraão (2Cor 11,22), da tribo de Benjamim (Rm 11,1), hebreu (2Cor 11,22), judeu (At 22,3). Ele dizia: ``Vivi no meio da minha nação aqui em Jerusalém'' (At 26,4). E neste ponto, apesar de tantas viagens e mudanças, mesmo apesar da sua conversão para Cristo, ele nunca mudou de nacionalidade, isto é, nunca deixou de ser judeu. Nunca esqueceu a sua origem. No entanto, a experiência de Cristo ressuscitado na sua vida fez com que ele, sem deixar de ser judeu, percebesse os limites da sua nacionalidade. Para ele, ser da raça de Israel já não era título de privilégio diante de Deus, pois, ``tanto os judeus como os gregos, estão todos debaixo do pecado'' (Rm 3,9). Todos, indistintamente, necessitam da graça que vem por Jesus Cristo (Rm 3,23-24). Já não há mais distinção entre judeu e grego (Rm 10,12). Paulo se fez judeu com os judeus, sem lei com os sem lei, para ganhar todos para Cristo (1Cor 9,20-23). Em Cristo, todos são iguais (1Cor 12,13; Gl 3,28; Cl 3,11).

21. Você é judeu e cidadão romano. Como é que consegue combinar estas duas coisas?

Não era fácil combinar estas duas coisas. O cidadão romano tinha a obrigação de participar do culto ao imperador, coisa que era absolutamente proibida aos judeus em nome da sua fé em Deus. Mas estes conseguiram achar uma forma viável de convivência sem conflito.Na maioria das cidades do império, os judeus, viviam organizados em associações chamadas politeuma. Um politeuma era uma associação oficialmente reconhecida pela polis, isto é, pelas autoridades da cidade. Um politeuma, possuía uma certa independência e gozava de alguns privilégios. Seus membros registrados podiam fazer valer estes seus direitos. Os politeumas dos judeus nas várias cidades lutavam sobretudo por dois objetivos bem precisos: 1. De um lado, queriam a plena integração dos seus membros corno cidadãos; assim, os judeus teriam direito aos privilégios dos ``Cidadãos da Cidade'', sobretudo com relação à isenção das taxas e dos impostos; 2. De outro lado, queriam plena liberdade para poder praticar a própria religião; a liberdade religiosa que eles pleiteavam consistia no seguinte: não ser obrigado a trabalhar no sábado; ser isento do serviço militar; não participar do culto ao Imperador; ter o direito de seguir os seus próprios costumes alimentares; pautar a vida conforme as suas próprias leis.

Desde os tempos de Júlio César, entre 47 e 44 a .C., os judeus foram favorecidos com estes privilégios como recompensa pelos serviços prestados ao império. Por isso mesmo, os judeus da diáspora, contrariamente aos da Palestina, não tinham tanto problema de convivência com os romanos. Tinham até uma certa simpatia pelo império e sua organização.Em alguns lugares, os privilégios especiais dos judeus provocaram a animosidade da população local contra eles, sobretudo por causa dos seus costumes alimentares diferentes e por causa da sua religião que não aceitava o culto ao imperador e às divindades locais. Uma ou outra vez, surgiram alguns conflitos com o império. Várias vezes, os judeus tentaram recorrer à autoridade romana contra os cristãos (At 13,8.50; 14,5; 17,5-9; etc.).

22. Como cidadão romano, você chegou a prestar serviço militar?

Um cidadão romano era obrigado a prestar serviço militar nas legiões romanas. Mas é provável que Paulo tenha ficado isento, pois, como já vimos, os judeus conseguiram o privilégio da isenção do serviço militar por vários motivos, todos religiosos: 1. o serviço militar dificultava a observância do sábado; 2. impedia a observância da lei da pureza e dos costumes alimentares próprios; 3. exigia dos soldados o culto ao imperador, proibido aos judeus em nome da sua fé em Deus.

23. Você já teve problema com a polícia? Sofreu alguma perseguição?

Muitas vezes! Desde a sua primeira viagem missionária, ou melhor, desde o dia da sua conversão, Paulo encontrou resistência, era perseguido e molestado. Para impedir ou dificultar a ação de Paulo, os seus adversários recorriam à força da polícia, ao poder das autoridades ou a outros meios de pressão: em Damasco (At 9,23-24), em Jerusalém (At 9,29), em Chipre (At 13,8), em Antioquia da Pisídia (At 13,50), em Icônio (At 14,5), em Licaônia (At 14,19), em Filipos (At 16,22), em Tessalônica (At 17,5-9), em Beréia (At 17,13), em Corinto (At 18,12), em Éfeso (At 19,23-40), em Jerusalém (At 21,27-30). Ele mesmo informa que, ``foi flagelado três vezes. Cinco vezes recebeu 40 golpes menos um'' (2Cor 11,25). Uma vez, a polícia salvou a vida de Paulo. Foi em Jerusalém, quando ele corria perigo de ser linchado pela multidão na praça do templo. (At 21,31-32).

24. Você já teve problema com a justiça? Já teve que comparecer diante do tribunal?

Em Corinto, pressionado pelos judeus, Paulo teve que comparecer diante do tribunal romano, onde Gallio, irmão de Sêneca, era pro-consul. Este deu ganho de causa a Paulo contra os judeus (At 18,12-16).

Em Jerusalém, a pedido do centurião romano, Paulo teve que comparecer diante do tribunal dos judeus, o sinédrio (At 22,30). Foi nesta ocasião que ele provocou um conflito entre os membros do próprio tribunal ao dizer que estava sendo julgado pela sua fé na ressurreição (At 23,6-7). Deste modo, jogou os fariseus contra os saduceus e conseguiu impedir que fosse condenado. Nem houve julgamento (At 23,8-10).

Levado para Cesaréia, Paulo teve que comparecer diante de Félix, o governador romano, que protelou o assunto e o deixou preso, sem julgamento, durante dois anos (At 24,22-27). Festo, o novo governador, quis que Paulo fosse julgado no tribunal de Jerusalém (At 25,9). Foi nesta ocasião que Paulo apelou para o tribunal de César em Roma (At 25,10-11). Ele sabia que a proposta de se fazer o julgamento em Jerusalém era apenas um pretexto para poder assassiná-lo numa emboscada durante a viagem para lá (At 25,3).Em Roma, ele continuou preso, por mais dois anos, aguardando o julgamento que, ao que tudo indica, não aconteceu por falta de provas (At 28,30-31).

25. Quantas vezes já esteve preso, aonde e por quê?

Paulo foi preso várias vezes: em Filipos (At 16,23), em Jerusalém (At 21,33), em Cesaréia (At 23,23), em Roma (At 28,20). Além disso, ele deve ter sofrido uma prisão muito pesada em Éfeso, de onde mandou cartas para os Filipenses (Fil 1,13), para os Colossenses (Co 4,18) e, talvez, para Filemon (9 e 13). A prisão em Éfeso foi tão pesada, que ele chegou a perder a esperança de sobreviver (2Cor 1,8-9). Foi como ``uma luta contra animais selvagens'' (1Cor 15,32). Ele mesmo, fazendo um resumo da sua vida, sugere que passou por muitas prisões (2Cor 11,23).

O motivo aduzido pelos adversários para prendê-lo nem sempre era o mesmo. Em Filipos, a acusação diz a propósito de Paulo e Silas: ``Estes homens estão provocando desordem em nossa cidade; são judeus e pregam costumes que a nós, romanos, não é permitido aceitar nem seguir'' (At 16,20-21). Em Jerusalém, os judeus gritavam ao povo contra Paulo: ``Israelitas, socorro! Este é o homem que anda ensinando a todos e por toda a parte contra o nosso povo, contra a lei e contra este lugar. Além disso, ele trouxe gregos para dentro do ``Templo, profanando este santo Lugar'' (At 21,28). Em Cesaréia, o governador recebeu a seguinte escrita do oficial romano de Jerusalém a respeito de Paulo: ``Verifiquei que ele era incriminado por questões referentes à lei que os rege, não havendo nenhum crime que justificasse morte ou prisão'' (At 23,29). E diante do tribunal a acusação dos próprios judeus dizia: ``Verificamos que este homem é uma peste: ele promove conflitos entre os judeus do mundo inteiro e é também um dos líderes da seita dos nazareus. Ele tentou inclusive profanar o templo; por isso, o prendemos'' (At 24,5-6).

Apesar de preso, Paulo continuava livre: escrevia cartas e anunciava o Evangelho ``com firmeza e sem impedimento'' (At 28,31).

26. Dizem que você é uma pessoa doente. É verdade? Como vai de saúde?

Paulo deve ter tido uma saúde de ferro para poder levar a vida que levou. Dos 40 aos 60 anos de idade, viajava a pé pelo mundo, percorrendo ao todo mais de 15 mil quilômetros, suportando canseiras, prisões, açoites, perigos de morte, flagelações, apedrejamento, naufrágios, perigos nas estradas, nos rios, nas serras, perigos por parte dos judeus e por parte dos falsos irmãos, a preocupação constante pelas comunidades, sem contar o trabalho profissional como fabricante de tendas de manhã até à noite, com salário minguado que o deixava com fome e sede e o obrigava a fazer vigílias e horas-extras (cf. 2Cor 11,23-28). Só mesmo com muita saúde!
Mesmo assim, durante a segunda viagem missionária, a doença apareceu na vida de Paulo e o obrigou a fazer uma parada forçada na Galácia da Ásia Menor (Gl 4,13). Ele aproveitou da ocasião para anunciar o Evangelho aos habitantes da região e, assim, contribuiu para que surgisse a comunidade dos Gálatas. Tratava-se, provavelmente, de uma doença nos olhos, pois os Gálatas queriam até ``arrancar os próprios olhos para dá-los a Paulo'' (Gl 4,15).
Alguns exegetas acham que o misterioso ``aguilhão na carne'', de que ele fala na Carta aos Coríntios (2Cor 12,7), também tenha sido uma doença. É difícil saber o que era na verdade, pois Paulo não o explica.

O fato de Paulo mostrar-se preocupado com a saúde dos companheiros e de recomendar a Timóteo que bebesse um pouco de vinho por causa do estômago e das freqüentes fraquezas (1Tm 5,23), revela uma pessoa realista que sabia apreciar o imenso dom de uma boa saúde.

27. Como você se distrai e se diverte? Tem algum passa-tempo? É admirador de algum esporte?

É difícil saber o que o divertia e distraía. Durante toda a sua vida, sobretudo depois da sua conversão, aquilo que o ocupava e o dilatava por dentro era o que ele chamava a agapè, o amor (1Cor 13,1-13). Por este amor, permitia que o outro, a comunidade, entrasse dentro dele, ocupasse todo o espaço, morasse aí dentro como o dono real da casa e o distraísse de si mesmo, do seu próprio centro, para o bem-estar dos outros.

No fim da vida, já depois dos 50 anos de idade, aquilo que mais o
ocupava e preocupava por dentro era ``a solicitude por todas as comunidades'' (2Cor 11,28). Ele não deve ter tido muito tempo nem ocasião para se divertir. É difícil saber se tinha algum passatempo. Nas horas livres e nas horas de trabalho na oficina ou no mercado, ele discutia o assunto da Boa Nova de Jesus com o pessoal (At 17,11.17).

Mesmo assim, tem alguma coisa nas cartas que nos revela o gosto e a preferência de Paulo. Quando menino, ele deve ter gostado muito de assistir às corridas no estádio da cidade, pois delas ele continua falando, até depois de velho, mesmo para comparar a mensagem do Evangelho e as suas exigências para a vida (Gl 2,2; 5,7; 1Cor 9,24-26; Fil 2,16; 3,12-14; 2Tm 4,7; Hb 12,1).

Paulo é nascido e criado em cidade grande. Tarso tinha mais ou menos 300 mil habitantes. Uma cidade assim tinha o seu estádio de esportes e organizava os seus jogos de atletismo, cada quatro anos: corridas, lutas, lançamento de disco, acertar no alvo, etc. Paulo pode não saber muito de roça e de plantas, mas ele entende de jogos urbanos. As comparações que ele usa são quase todas tiradas dos jogos e ele supõe que os seus leitores as entendam: ganhar a coroa (1Cor 9,25), prosseguir o alvo (Fil 3,14), alcançar o prêmio (Fil 3,14), lutar sem soltar soco no ar (1Cor 9,26), correr na direção certa (1Cor 9,26). Ele fala em ``luta'' e ``combate'' (2Tm 4,7), em ``pugilato'' (1Cor 9,26). Conhece o esforço e a disciplina dos atletas (1Cor 9,25). Provavelmente, mesmo depois de velho, ele acompanhava o resultado dos jogos e, quem sabe, torcia por algum time!

28. O que lhe causou mais tristeza na vida?

Paulo teve muitas tristezas e problemas na vida. Ele as enumera na segunda carta aos Coríntios (2Cor 11,23-29). Teve tristezas nas comunidades, sobretudo em Corinto. Mas a tristeza maior parece ter sido a recusa dos seus irmãos, os judeus, de crer em Jesus e de aceitá-lo como o messias prometido e esperado. A isto ele se refere quando diz: ``Tenho uma grande tristeza, uma dor incessante no coração'' (Rm 9,2). Ele chega a dizer que gostaria de ser ``separado de Cristo'', se com isto pudesse ganhar os seus irmãos para Cristo (Rm 9,3). Estêvão questionou a Paulo e conseguiu levá-lo à conversão. Paulo, uma vez convertido, questionou os outros judeus, mas não conseguiu levá-los à conversão. Pelo contrário, provocou a raiva deles a ponto de ser perseguido por eles com ódio de morte, pois não o perdoavam de, como eles diziam, ter se levantado contra o povo, contra a lei e contra o templo (At 21,28; cf. At 9,23; 21,31; 23,12; 25,3).
Outro sofrimento muito grande de Paulo vinha dos ``falsos irmãos'' (2Cor 11,26), ou ``falsos apóstolos'' (2Cor 11,13). Os ``falsos irmãos'' eram judeus convertidos que não concordavam com a abertura de Paulo com relação à entrada dos pagãos na Igreja. Eles achavam que os pagãos, ao entrarem na comunidade, deviam observar toda a lei e praticar a circuncisão (At 15,1.10; Gl 6,12-13).

Por isso, procuravam solapar a base do trabalho de Paulo, dizendo que a sua pregação não tinha a aprovação dos grandes apóstolos (Gl 2,1-10). Obrigaram Paulo a fazer a sua defesa (cf. 2Cor 11 e 12). Se Paulo se defende, não é por causa dele mesmo, mas por causa das comunidades por ele fundadas.

29. Paulo, qual o lugar que a religião ocupa em sua vida?

Paulo sempre foi profundamente religioso, tanto antes como depois da sua conversão para Cristo. Antes da conversão, ele vivia conforme a lei e a esperança do seu povo (At 24,14-15; 22,3; 26,6-7), identificado com o ideal da religião de seus pais. Na prática da religião, ele seguia o grupo mais observante que era o grupo dos fariseus (At 26,5). Ele mesmo confessa que era irrepreensível na mais estrita observância da lei (Fil 3,6). Paulo era um homem de zelo (Fil 3,6; At 22,3), ``zelo pelas tradições paternas'' (Gl 1,14). Para defender a tradição dos pais chegou a perseguir os cristãos (At 26,9; 22,4; Gl 1,13).

Era na vivência fiel desta religião dos pais, que Paulo procurava a sua segurança junto de Deus. O testemunho de Estêvão, porém, abalou-o profundamente. Foi o começo da mudança!A conversão para Cristo significou uma mudança profunda na vida de Paulo, mas não significou uma mudança ou troca de Deus. Pelo contrário! Paulo continuou fiel ao mesmo Deus dos pais, pois em Jesus reencontrou e reconheceu o mesmo Deus de sempre, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó. A diferença profunda entre antes e depois é que, agora, ele já não coloca a sua segurança na observância da lei, mas no amor gratuito de Deus por ele, manifestado e experimentado em Jesus (Gl 2,20-21). É na certeza absoluta deste amor, que está o fundamento último da nova segurança que encontrou junto de Deus (Rm 8,31-39).

30. Explique melhor porque você aprovou a morte de Estêvão e perseguiu os cristãos.
Paulo procurava atingir a justiça através da observância da lei (Fil 3,5-6). A sua vida e a vida do seu povo estava organizada e estruturada, desde séculos, em torno do cumprimento das exigências da Aliança, que Deus tinha feito com seu povo. Observando plenamente as cláusulas da Aliança, o povo teria alcançado a justiça, seria justo. Esta era a teoria, a doutrina ensinada ao povo. A prática, porém, era outra.

Na prática, Paulo experimentava dolorosamente que ele, apesar de todo o esforço, não era capaz de cumprir tudo o que a lei mandava. O seu esforço não bastava para alcançar a justiça. Paulo continuava em falta com Deus e não alcançava a paz da consciência. Queria fazer o bem e não o conseguia (Rm 7,14-24). Mesmo assim, apesar da prática deficiente, ninguém duvidava da exatidão da doutrina ensinada pelos fariseus.

O testemunho de Estêvão, porém, abalou na raiz este mundo de Paulo e questionou radicalmente a exatidão do caminho que ele seguia para alcançar a justiça e a paz com Deus. Na hora de morrer apedrejado, Estêvão disse: ``Vejo os céus abertos e o Filho do Homem de pé à direita de Deus'' (At 7,56). Neste testemunho, Estêvão dava prova de estar na presença de Deus e de ser acolhido por Ele, tranqüilo, em paz com a própria consciência, e, portanto, de possuir a justiça que Paulo procurava e não alcançava. E mais: Estêvão possuía a justiça não como resultado da observância da lei, mas como um dom gratuito de Deus através de Jesus, vivo, de pé, à direita de Deus; o mesmo Jesus que, alguns anos atrás, tinha sido condenado como herético e blasfemo pela suprema autoridade dos judeus e morrera vergonhosamente numa cruz!Este testemunho tão breve e tão simples era a negação radical do ideal de justiça de Paulo. Ou Estêvão, ou Paulo! Os dois não podiam ser verdadeiros ao mesmo tempo. Eram dois caminhos totalmente diferentes, dois mundos opostos! Ou um, ou outro!Paulo estava convencido de que o seu caminho era o caminho certo.

Para ele, o caminho de Estêvão era falso e corruptor dos bons costumes. Por isso, aprovou a morte de Estêvão e começou a perseguir os cristãos. Agia por ignorância (1Tm 1,13). Pensava estar prestando um serviço a Deus em defesa da tradição dos pais. Mas no fundo, quem sabe, se Paulo procurava calar a voz de Estêvão e dos cristãos, era porque queria abafar a voz da própria consciência que começava a incomodá-lo. Paulo estava fugindo de si mesmo e de Deus, até que Deus interveio e o derrubou na estrada de Damasco.

31. Como foi a entrada de Jesus na sua vida? Qual o significado e o alcance que a experiência na estrada de Damasco teve para você?

A entrada de Jesus foi o divisor das águas. A vida de Paulo se divide em antes e depois da experiência na estrada de Damasco. Os fenômenos externos que acompanharam o processo interno da conversão e os termos e comparações usados para descrevê-la sugerem que a entrada de Jesus na vida de Paulo não foi uma brisa leve e tranqüila, mas uma tempestade violenta, repentina. Ela sacudiu tudo e atingiu as fundações da sua existência. Fez desmoronar todo um mundo, uma tradição antiga, montada desde séculos, e fez aparecer um novo começo.
Deus não pediu licença. Entrou sem mais e jogou Paulo no chão (At 9,4; 22,7; 26,14). Quando levantou, estava cego, e cego ficou durante três dias (At 9,8-9). Apesar de ser o guia do grupo, Paulo teve que ser guiado pelos próprios súditos (At 9,8). Ele mesmo diz que o nascimento dele para Cristo não foi normal. Deus o fez nascer de maneira forçada e violenta, através de um aborto (1Cor 15,8).

Paulo não estava esperando: ``Fui apanhado!'' (Fil 3,12). Mesmo assim, depois que tudo aconteceu, teve que reconhecer que era isto que ele estava esperando desde sempre. Foi para isto que Deus o separou e o colocou à parte, desde o seio materno (Gl 1,15). Ele o viveu como sendo o seu destino, a sua vocação, a sua missão. Uma quase fatalidade, da qual já não podia escapar: o seu destino, agora, é anunciar o Filho de Deus entre os pagãos (Gl 1,16). É uma necessidade para ele: ``Ai de mim se não anunciar o Evangelho!'' (1Cor 9,16). Ao mesmo tempo, ele viveu aquela hora como um momento de misericórdia por parte de Deus. Deus o acolheu, quando ele mesmo era insolente e perseguidor (1Tm 1,13). Foi o momento em que superabundou nele a graça de Deus (1Tm 1,14). Foi assim que Cristo o formou para o seu serviço. (1Tm 1,12).
Agora, para Paulo, o viver é Cristo (Fil 1,21). Já não é ele que vive, mas é Cristo que vive nele (Gl 2,20). Paulo sabe que é amado: ``Ele me amou e se entregou por mim!'' (Gl 2,20). Daqui para a frente, ele já não quer saber outra coisa a não ser Jesus crucificado (1Cor 2,2). Quer completar na sua própria carne o que falta na paixão de Cristo (Cl 1,24). Por amor a Jesus largou tudo para poder possuí-lo a ele e ser encontrado nele (Fil 3,8-9). Participa da paixão de Cristo para poder experimentar a sua ressurreição (Fil 3,10-11). Traz a agonia de Jesus no corpo, para que se manifeste nele a vida (2Cor 4,10-12; Gl 6,17). Paulo vive uma total identificação com Jesus morto e ressuscitado.

Por causa desta experiência de Cristo morto e ressuscitado, tudo mudou na vida de Paulo: de elite virou periferia, de livre virou escravo, de honrado virou expulso, de rico virou pobre! (Veja respostas às perguntas 11 a 13). Por causa de Cristo, suporta tudo e vive entregue, dia e noite (1Cor 13,4-6). Um novo critério invadiu sua vida: a graça libertadora de Deus tomou forma concreta em Jesus, ``que me amou e se entregou por mim'' (Gl 2,20).

32. Qual foi a última razão que levou você a aceitar Jesus como Messias?

Houve o encontro na estrada de Damasco que derrubou Paulo e o deixou cego durante três dias. Foi a experiência mais forte e mais duradoura da sua vida. No entanto, não foi só isto que o levou a aceitar Jesus e a reconhecê-lo como Messias. Dentro desta experiência, única e avassaladora, alumiou para Paulo a certeza de que Jesus é o SIM de Deus às promessas feitas ao povo no passado (2Cor 1,20).

Com outras palavras, aceitando Jesus como Messias, Paulo não estava sendo infiel ao seu povo, nem estava deixando de ser judeu, mas se tornava mais judeu ainda. No fundo, foi a vontade de ser fiel ao seu povo e às suas esperanças, suscitadas pelas promesas de Deus, que o obrigava a aceitar Jesus como Messias. A sua fidelidade a Cristo e a sua experiência de Cristo de um lado, e a sua fidelidade ao seu povo e a sua experiência de povo de outro lado, eram como dois lados da mesma medalha.

Paulo nunca se sentiu traidor do seu povo, por mais que o acusassem disso. Ao contrário, vivendo em Cristo, sentia-se mais judeu do que antes, possuidor da esperança do seu povo. Era a fidelidade ao Antigo Testamento que o levou a aceitar o Novo Testamento.

33. Você brigou com Barnabé no começo da segunda viagem missionária. Por quê?

João Marcos, sobrinho de Barnabé, acompanhou Paulo e Barnabé na primeira viagem, mas o abandonou na metade (At 13,13). Quando Paulo convidou Barnabé para uma segunda viagem, este quis que João Marcos fosse junto outra vez (At 15,37). ``Mas Paulo era de opinião que não se devia levar junto aquele que os havia abandonado na Panfília e não os acompanhara no trabalho'' (At 15,38). Foi aí que os dois brigaram e se separaram, um do outro, por causa de Marcos (At 15,38-40).

Mais tarde houve a reconciliação. Paulo tornou-se, novamente, amigo de Marcos e reconheceu o valor dele para o anúncio do Evangelho, pois ele escreve a Timóteo: ``Procure Marcos e traga-o com você, porque ele pode ajudar-me no ministério'' (2Tm 4,11). E na Carta aos Coríntios, Barnabé é lembrado como companheiro fiel e exemplar de Paulo (1Cor 9,6).

34. Você brigou também com Pedro. Foi pelo mesmo motivo?

A crise mais profunda das primeiras comunidades surgiu por ocasião da entrada dos pagãos na igreja. No começo, ninguém pensava em converter os pagãos. Só se anunciava o Evangelho aos judeus (At 11,19). Caso um pagão quisesse entrar na igreja, aplicava-se o costume antigo. Desde séculos, quando um pagão se convertia para o Deus de Israel, ele devia assumir também todos os compromissos da Aliança que este Deus tinha concluído com o seu povo, a saber, a observância da lei de Moisés, a circuncisão, os costumes, etc. Esta era a teoria antiga que continuava em vigor, aceita por todos. Mas a prática dos cristãos correu na frente da teoria e modificou o quadro.

Em Antioquia, os cristãos, todos eles judeus convertidos, fugidos de Jerusalém na época da grande perseguição, começaram a falar de Jesus também aos pagãos (At 11,19-20). ``A mão do Senhor estava com eles, e bom número abraçou a fé e converteu-se ao Senhor'' (At 11,21). Fato consumado! Os pagãos entraram, sem passar pelas observâncias judaicas! Aí surgiu o problema teórico: Não pode! ``Se não forem circuncidados como ordena a lei de Moisés, vocês não poderão salvar-se!'' (At 15,1).

Dividiu-se a igreja! Um grupo, concentrado em Antioquia, tomou a defesa da entrada direta dos pagãos, sem passar pela observância da lei de Moisés. Paulo e Barnabé faziam parte deste grupo. Um outro grupo, concentrado em Jerusalém, dizia o contrário: ``É preciso circuncidar os pagãos e impor-lhes a observância da lei de Moisés'' (At 15,5). Alguns deste grupo eram fariseus convertidos (At 15,5).

Convocou-se uma reunião, um Concílio, para resolver o problema e decidir a questão (At 15,6).

O Concílio decidiu em favor da entrada dos pagãos, sem a imposição da lei de Moisés e da circunsição. A decisão estava baseada na prática, nos fatos e na experiência. A prática: tudo aquilo que acontecera nas viagens de Paulo e Bamabé (At 15,3-4.12); os fatos: a conversão de Cornélio e o seu batismo por Pedro (At 15,7-9); a experiência: a incapacidade sentida pelos judeus de conseguirem a justiça através da observância da lei (At 15,10). Foi deste modo que o Concílio releu e atualizou a teoria antiga e chegou à conclusão: ``É pela graça do Senhor Jesus que acreditamos ser salvos'' (At 15,11).A decisão do Concílio foi um marco importante na história das primeiras comunidades. Mas nem todos entenderam o seu alcance.
Alguns se apegavam à letra do documento conciliar (At 15,23-29) e negavam o seu espírito. Ora, é dentro deste contexto das tensões pós-conciliares, que vai aparecer a briga de Paulo com Pedro.Certa vez, Pedro chegou de visita na comunidade de Antioquia. Fiel ao espírito do Concílio, convivia com todo mundo, sem fazer distinção entre pagão e judeu (Gl 2,12). A essa altura chegou de Jerusalém um grupo de gente mais conservadora que não se misturava com os pagãos. Com medo das críticas deste grupo, Pedro se afastou dos pagãos (Gl 2,12). A mudança no comportamento de Pedro levou muita gente a fazer o mesmo. ``Até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia'' (Gl 2,13). Foi um impacto muito grande na comunidade.
Por causa de Pedro, os pagãos ficavam com a impressão de serem cristãos de segunda categoria. Cristão mesmo, cem por cento, de primeira categoria, seria só o judeu convertido que observava toda a lei de Moisés! Fiel à letra do Concílio, Pedro, sem se dar conta, negava o seu espírito na prática. O seu comportamento era, ``digno de censura'' (Gl 2,11).Quando Paulo percebeu a gravidade da situação, reagiu fortemente e brigou com Pedro. Ele mesmo descreve o fato: ``Quando vi que eles não estavam agindo direito conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: ``Você é judeu, mas já viveu como os pagãos e não como os judeus. Como então pode, agora, obrigar os pagãos a viverem como judeus?'' (Gl 2,14).
A reação de Paulo revela a profundidade da experiência que ele teve no caminho de Damasco. Foi lá que ele experimentou, de um lado, a própria incapacidade de atingir a justiça pela observância da lei e, do outro lado, a misericórdia de Deus que o acolhia de graça e lhe comunicava a justiça pela fé em Jesus Cristo. Reagindo contra Pedro, Paulo, de certo modo, estava defendendo a experiência que teve de Deus no caminho de Damasco, e tirava dela uma lição para a vida de toda a igreja.

35. Por que você não casou? É contra o casamento?

Paulo não era casado (1Cor 7,8). Alguns exegetas acham que ele era viúvo. Não sei qual o argumento que eles têm para fazer tal afirmação. Paulo não se casou, não porque era contra o casamento, mas porque não quis casar. Era a maneira como ele via a sua vocação pessoal e procurava ser fiel a ela. O não querer casar tinha a ver com a sua experiência pessoal de Cristo (1Cor 7,32) e com o fato de que em Cristo o fim dos tempos já tinha chegado (1Cor 7,29-31; cf. Mc 12,25).

Mesmo não casando, Paulo defendia o direito que ele tinha de casar (1Cor 9,5). Não era contra o casamento. Pelo contrário, considerava como ``doutrina demoníaca'', ``hipocrisia de mentirosos'' e ``fábulas ímpias de gente caduca'' a teoria daqueles que proibiam o casamento (1Tm 4,1-7).

36. Muita gente não gosta de você por causa da sua atitude negativa para com as mulheres. É verdade que você é contra a participação da mulher na comunidade?

Alguns textos de Paulo causam real dificuldade. Neles, a mulher aparece em posição inferior, não devidamente valorizada. Não é possível clarear toda esta questão numa resposta breve como esta.

Vou enumerar só alguns fatores a serem levados em conta num eventual estudo mais aprofundado.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que a cultura e a consciência daquele tempo não eram as mesmas de hoje na questão da participação da mulher na vida da comunidade. Aqueles mesmos textos de Paulo que quando comparados com hoje, representam um retrocesso, podem representar um avanço, quando devidamente situados dentro do contexto da cultura e da sociedade daquela época.

Em segundo lugar, convém ver o contexto mais amplo da vida e da atividade do próprio Paulo: a sua maneira de se relacionar com as mulheres; o papel que ele reservava para as mulheres na vida e na organização das comunidades por ele fundadas; quais e quantas mulheres que aparecem nas cartas, nas lembranças finais e no relato das viagens.
Em terceiro lugar, convém lembrar que aqueles textos mais difíceis não expõem uma doutrina universal a ser aplicada tal qual em todos os tempos, mas, na maioria das vezes, querem resolver problemas concretos que estavam perturbando a vida da comunidade. Por isso, além do contexto da cultura, da sociedade e da vida de Paulo, deve ser examinado o contexto conflitivo da comunidade que levou Paulo a escrever daquela maneira negativa sobre a participação da mulher.

Vejamos como exemplo o texto de 1Tm 2,8-15, escrito para Timóteo, coordenador da comunidade de Éfeso (1Tm 1,3). O que vou dizer tirei de um artigo de Alan Padgett, Mulheres ricas em Éfeso; 1Tm 2,8-15 colocado dentro do seu contexto social; publicado em inglês em 1987 na revista Interpretation, páginas 19 a 31.

Na comunidade de Éfeso infiltrou-se um grupo de falsos doutores (1Tm 1,3.6). Eles inventavam doutrinas fabulosas (1Tm 1,3-4), interpretavam mal a Escritura (1Tm 1,7), não aceitavam a ressurreição (2Tm 2,18), proibiam o casamento (1Tm 4,3) e declaravam más as coisas boas que Deus criou (1Tm 4,3-5). Faziam questão de guardar as aparências de piedade (2Tm 3,5), mas na realidade fizeram da piedade uma fonte de lucro (1Tm 6,5.9-10).

Como professores ambulantes, de acordo com o costume da época, procuravam ser acolhidos nas casas de famílias mais ricas (2Tm 3,6).

Era o começo do gnosticismo penetrando nas comunidades.Ligado a este grupo dos falsos doutores aparece o grupo de algumas mulheres. Pois, para realizar o seu objetivo, aqueles doutores conseguiram influenciar e cativar algumas mulheres, desejosas de aprender coisas novas (2Tm 3,6-7), sobretudo algumas viúvas bem jovens ainda (1Tm 5,6-7.11). Provavelmente, eram mulheres recém-convertidas, pois participavam ainda das ``instruções'' (1Tm 2,11; cf. 3,6). Eram ricas, pois usavam objetos de ouro, pérolas e vestidos suntuosos (1Tm 2,9). Em todo caso, não eram pobres. Por serem mulheres de certa posse eram visadas pelos falsos doutores, pois, sendo ricas, elas podiam acolhê-los e sustentá-los, além de oferecer outras vantagens e prazeres (1Tm 5,6.11; 2Tm 3,6).

Aquelas mulheres tinham uma sede muito grande de saber: estudavam sempre (2Tm 3,7), rodeavam-se de professores para aquilo que lhes convinha (2Tm 4,3), sem jamais atingir o conhecimento da verdade (2Tm 3,7). Muito provavelmente, elas procuravam o conhecimento em vista de uma liderança maior dentro da comunidade; queriam ``ensinar e dominar'' (1Tm 2,12).
Influenciadas pelos falsos doutores, aceitavam qualquer doutrina estranha (1Tm 4,1-2), rejeitavam o casamento (1Tm 4,3; cf. 5,14), andavam de casa em casa, (provavelmente, de comunidade em comunidade) (1Tm 5,13) e já não cuidavam da própria família (1Tm 5,8), provocando brigas, discussões, raiva e fofocas (1Tm 1,4; 2,8; 5,13; 6,4-5). Destruíam a paz na comunidade.

Ora, lendo o texto de 1Tm 2,8-15 contra este pano de fundo, fica claro o seguinte: Paulo não fala sobre a mulher em geral, mas está pensando naquele grupo de senhoras da comunidade de Éfeso. Ele não é contra que a mulher estude, mas pede que aquelas senhoras estudem com calma e humildade enquanto ainda estiverem na instrução inicial (2Tm 2,11). Não é contra a participação e a liderança da mulher na comunidade, mas questiona as pretensões daquele grupo de viúvas ricas que, por serem ricas, eram visadas pelos falsos doutores e deixavam manipular-se ingenuamente por eles. Por isso pede que sejam mais modestas, para não provocar ainda mais aqueles doutores (2Tm 2,9-10). Não quer ensinar que o homem é superior à mulher, mas quer que, durante a fase da instrução inicial, os responsáveis pelo ensino na igreja tenham precedência sobre os alunos, sobretudo naquela época de tantas doutrinas variadas e estranhas (1Tm 2,11-12). Não quer ensinar que toda mulher deva tornar-se mãe para poder salvar-se, mas acha que, no caso daquelas viúvas jovens que desprezavam o casamento, só havia um único jeito para elas se recuperarem, a saber, casar de novo e ser mãe (1Tm 2,15; 5,14-15).
Comparado com o contexto daquela época, este texto de 1Tm 2,8-15 representa um avanço. Apesar de todas as reservas contra aquele grupo de senhoras de Éfeso, Paulo supõe como sendo a coisa mais normal que a mulher receba instrução, coisa que não era tão comum na sinagoga.

37. Por que você não levantou a voz contra a escravidão e contra a exploração de tanta gente pelo sistema do império romano? É verdade que você é amigo ou simpatizante do império romano?

Aqui também são vários os fatores que devem ser levados em conta para se poder chegar a uma resposta mais ou menos completa, pois trata-se de um assunto complexo e difícil. Como na resposta anterior, vou apenas indicar alguns destes fatores a serem aprofundados num eventual estudo que alguém queira fazer do assunto.

Em primeiro lugar, a consciência a respeito da problemática social era diferente. A situação dos cristãos no império romano era diferente da situação dos cristãos hoje na América Latina. Hoje, na América Latina, nós cristãos temos quase 500 anos de idade, somos mais ou menos 90% da população do continente e temos uma tremenda responsabilidade histórica na origem da estrutura anti-evangélica que existe por aqui. Nos tempos de Paulo, os cristãos não tinham nem 30 anos de idade, não chegavam nem sequer a meio por cento da população do império e, como cristãos, não estiveram presentes na origem quando foi criado o sistema explorador do império romano.

Em segundo lugar, o tipo de análise que hoje fazemos da sociedade não existia naquele tempo. Havia consciência do problema social, mas este não era percebido de maneira tão clara como hoje. A pergunta que fizemos a Paulo é legítima, mas é uma pergunta a partir das nossas preocupações e a partir de nosso nível de consciência e da nossa análise do problema social. Uma resposta mais completa exigiria um uso maior das ciências sociais no estudo do texto de Paulo, o que já está começando a acontecer na América Latina.

Em terceiro lugar, convém lembrar que os judeus, desde a destruição de Jerusalém em 587 a.C., viviam sob governos estrangeiros e se acostumaram a isto. Chegaram a ver nisto uma expressão da vontade de Deus. Esdras chegou a identificar a Lei de Deus e a Lei do rei (Esd 7,26). Aprenderam a conviver. Além disso, convém lembrar a diferença que havia neste ponto entre os judeus da Palestina e os judeus da diáspora, de que já falamos na resposta à pergunta nº 21.

Em quarto lugar, Paulo teve uma experiência profunda de Deus. Uma experiência assim relativiza todo o resto, tanto a riqueza como a pobreza, tanto o possuir como o não possuir. Eis alguns textos: ``Vivemos como indigentes e, não obstante, enriquecemos a muitos; como nada tendo, embora tudo possuamos'' (2Cor 6,10). ``Aprendi a adaptar-me às necessidades; sei viver modestamente, e sei também como haver-me na abundância; estou acostumado com toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece!'' (Fil 4,11-13). ``Se temos comida e roupa, contentemo-nos com isso'' (1Tm 6,8). ``O tempo se fez curto. Aqueles que compram, sejam como se não comprassem; os que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo'' (1Cor 7,29.30-31).

Em quinto lugar, havia em Paulo uma consciência bem clara do novo tipo de fraternidade a ser vivida na comunidade cristã. Nela devia estar superado todo relacionamento de dominação proveniente da religião (judeu-grego), da classe (livre-escravo), do sexo (homem-mulher) ou da raça (grego-bárbaro). Pois nela não podia haver mais diferença entre ``judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, grego e bárbaro'' (cf. Gl 3,28; Cl 3,11; 1Cor 12,13). Uma comunidade assim não deixa de ser um fator profundamente revolucionário, uma semente explosiva, mesmo que os seus membros não tenham plena consciência deste aspecto.

Em sexto lugar, comparando os conflitos da primeira viagem missionária (At 13,1-14,28) com os da segunda viagem missionária (At 15,36-18,22), percebe-se o seguinte: 1. Um envolvimento progressivo do império e das suas instituições nestes conflitos; 2. O império pode ter pessoas boas e simpáticas ao cristianismo, como o procônsul Sérgio Paulo de Chipre (At 13,6-12), mas tem leis e instituições que são usadas contra os cristãos (At 13,50; 14,5; 16,19-24.35-37; 17,5-9; 18,12-16); 3. Na primeira viagem, o conflito com o mundo pagão era mais no nível religioso (At 14,8-18), enquanto na segunda viagem já se situava mais no nível econômico (At 16,16-40) e no nível cultural e ideológico (At 17,16-34); 4. Nestes conflitos, os cristãos aparecem como gente sem poder: não conseguem que a opinião pública esteja a seu favor, nem conseguem movimentar a classe alta a seu favor; 5. As instituições do império e a classe alta conseguem ser usadas contra os cristãos por gente que se sente prejudicada pela mensagem cristã, mas não conseguem ser usadas pelos cristãos para defender a justiça e a verdade contra a injustiça e a falsidade. Tudo isto revela uma incompatibilidade crescente entre o império e o evangelho.

Em sétimo lugar, é possível que Paulo, como judeu da diáspora, tenha tido uma certa simpatia para com o império romano. O mesmo se diga de Lucas que escreveu os Atos dos Apóstolos. Mas mesmo tendo uma possível simpatia, Paulo não adaptou o evangelho às suas simpatias, caso contrário, não teria provocado aquela escalada progressiva do império contra as comunidades. E não convém esquecer que Paulo morreu condenado pelo império romano por causa do amor que ele tinha ao evangelho.

38. Por que você ficou tão desanimado e enfraquecido depois daquele discurso fracassado em Atenas? Você não é homem de ficar desanimado. Havia alguma razão mais profunda?

Paulo vinha vindo de uma maratona ao longo das cidades da Ásia Menor e da Grécia. Era a sua segunda viagem missionária (At 15,36ss.). Tinha fundado várias comunidades na Galácia, em Filipos, Tessalônica e Beréia. Em quase todas estas cidades, ele foi perseguido e torturado. Teve que fugir várias vezes. Nada, porém, era capaz de amedrontá-lo ou de desanimá-lo. Finalmente, ele chegou em Atenas, capital da cultura helenista (At 17,15).
Convidado pelo pessoal que o escutava na praça do mercado, teve que expor suas idéias no areópago (At 17,16-21). Preparou um discurso, no qual tentou comunicar a Boa Nova de Jesus (At 17,22-31). O discurso não teve muito efeito. Quando falou da ressurreição, os ouvintes se desinteressaram, zombaram dele e suspenderam a sessão (At 17,32). Pouca gente acreditou (At 17,34). Ora, Paulo, que parecia ter força e coragem para enfrentar qualquer contratempo, inclusive perseguição, prisão e tortura, este mesmo Paulo perdeu o ânimo após o fracasso da sua ação em Atenas. Saiu de lá e foi para Corinto (At 18,1), onde, no dizer dele mesmo, chegou ``cheio de fraqueza, receio e tremor'' (1Cor 2,3), ``em meio a muita angústia e tribulação'' (1Ts 3,7). Por que Paulo ficou assim? O que provocou nele aquele desânimo feito de ``fraqueza, receio, tremor, angústia e tribulação''?

Certos defeitos escondidos só aparecem no decorrer da caminhada.
Aos poucos, os próprios fatos da vida vão tirando a casca, revelando quem somos, de fato, frente a Deus e frente aos outros. A conversão é um processo permanente, também para Paulo! Apesar de ter experimentado a gratuidade da ação de Deus, dentro dele continuava ainda um resto da mentalidade das ``obras''. Ele pensava poder derrubar e converter os pagãos com a força e a lógica dos seus argumentos. Em vista disso montou um discurso bem feito (At 17,22-31), baseado nas leis da lógica e da oratória. Mas teve que experimentar a total inutilidade dos seus argumentos. Em vez de derrubar, foi derrubado na sua pretensão de vencer o inimigo. O sistema da cultura helenista não se abalou, nem se alterou. Pouca gente se converteu. A maioria do pessoal nem se interessou. Não era nem a favor nem contra. Não quis nem discutir o assunto: Até logo! ``Fica para outra vez!'' (At 17,32).

Paulo descobriu e experimentou a fraqueza e os limites da sua pretensão. O nascimento doloroso para Cristo, iniciado no caminho de Damasco, continuava. Mas ele soube tirar a lição dos fatos. Na carta aos Coríntios, ele descreve como chegou por lá, após o fracasso em Atenas: ``Irmãos, eu mesmo, quando fui ao encontro de vocês, não me apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria, para anunciar-lhes o mistério de Deus. Entre vocês, eu não quis saber outra coisa a não ser Jesus Cristo, e Jesus Crucificado. Estive no meio de vocês cheio de fraqueza, receio e tremor; minha palavra e minha pregação não tinham brilho nem artifícios para seduzir os ouvintes, mas a demonstração residia no poder do Espírito, para que vocês acreditassem, não por causa da sabedoria dos homens, mas por causa do poder de Deus'' (1Cor 2,1-5). Parece um outro Paulo, diferente do Paulo que discursava no areópago com oratória e lógica.

Aprendeu a lição! Ficou mais humilde. Soube dar a Deus o lugar que Ele merece, sem que isto o levasse a uma passividade. Sendo judeu, teve que aprender da prática como lidar com o pessoal da cultura helenista e com o próprio Deus. Aprendeu apanhando e sofrendo!Depois da queda na estrada de Damasco, foi a chegada de Ananias que o reanimou e o tirou da cegueira (At 9,17-19). Agora, depois da queda em Atenas, foi a chegada de Timóteo com boas notícias da comunidade recém fundada de Tessalônica, que o ajudou a superar o desânimo e reencontrar a fonte da força e da coragem: ``Agora estamos reanimados!'' (1Ts 3,8). A partir daquele momento, Paulo teve novamente disposição para dedicar-se inteiramente ao anúncio da Palavra (At 18,5).

39. Quando nós, hoje, falamos das comunidades que você andou fundando por aí, imaginamos comunidades perfeitas de gente santa. É verdade? Diante de tanta santidade, ficamos até desanimados, pois hoje é tão difícil viver em comunidade. O que você nos tem a dizer sobre isto?

O que Paulo nos tem a dizer é aquilo que ele mesmo viveu e conheceu, tanto da sua própria experiência, como da experiência da comunidade dos primeiros cristãos em Jerusalém. Anarração dos fatos vividos é o que mais ajuda a desfazer a idéia de que as primeiras comunidades fossem feitas só de gente santa sem problemas.

O livro dos Atos dos Apóstolos apresenta a primeira comunidade de Jerusalém como o ideal para as comunidades de todos os tempos. Lucas caprichou naqueles pequenos resumos que ele fez da vida dos primeiros cristãos (At 2,42-47; 4,32-35; 5,12-16). Neles, descreve não tanto o que existiu de fato, mas sim o que deveria existir sempre em toda e qualquer comunidade. O ideal da comunidade, ele o colocou bem perto da fonte, que é a ressurreição de Jesus.
Mas Lucas não escondeu a realidade dura da caminhada. Lendo nas linhas e nas entrelinhas, a gente percebe que havia muitos problemas e dificuldades. Não era gente tão santa e tão diferente de nós, como, às vezes imaginamos. Eis a lista de alguns destes problemas da primeira comunidade:1. Tentativa de Ananias e Safira de usar a comunidade para se promover (At 5,1-11); 2. Briga entre os ``hebreus'' (judeus convertidos da Palestina) e os ``helenistas'' (judeus convertidos da diáspora) por causa da assistência diferente dada às viúvas (At 6,1); 3. Tensão interna por causa da liderança nova de Estêvão: o grupo dos helenistas, ligado a Estêvão, é perseguido e deve fugir, enquanto os apóstolos, (provavelmente, o grupo dos hebreus), continuam em Jerusalém (At 8,1); 4. Tentativa de alguns de comprarem o carisma e o dom do Espírito Santo por meio de dinheiro (At 8,19); 5. Falta de gente para anunciar o evangelho (At 8,31); 6. Perseguição dos cristãos por parte dos sacerdotes (At 4,1-3) e, mais tarde, por parte dos fariseus (At 8,1-3: Saulo é fariseu); 7. Conflito entre os cristãos vindos do judaísmo e os que tinham vindo do paganismo (At 15,1); 8. Incerteza e dúvida de Pedro: não sabe como se comportar nem como enfrentar o problema (Gl 2,11-12); 9. Cobrança feita a Pedro por parte de um grupo mais conservador que não concordava com ele (At 11,2-3.18); 10. Falta de coordenação geral, pois as coisas vão acontecendo e os apóstolos só ficam sabendo depois (At 11,19-22).

Mesmo assim, apesar de todas estas dificuldades, a animação do pessoal era muito grande. Eles não desanimavam, e as comunidades cresciam (At 2,41.47; 4,4; 5,14; 6,1.7; 9,31; 11,21.24; 16,5; etc.).

As comunidades eram um novo modo de ser Povo de Deus!Ora, o mesmo vale para as comunidades fundadas por Paulo nas grandes cidades do império romano. Só que nelas os conflitos e os problemas eram bem maiores. Algumas destas dificuldades já foram vistas nesta entrevista. Vou tentar lembrá-las aqui, acrescentando algumas outras. Indico apenas o fato. Não é aqui o lugar de aprofundar este assunto. Eis a lista provisória:1. Falta de instrução até por parte de líderes como Apolo que nada entendia do batismo (At 18,25-26); 2. Continuava a influência de João Batista, a ponto de várias pessoas só conhecerem o batismo dele; nada sabiam do Espírito Santo (At 19,1-3); 3. Divisões internas por causa das linhas diferentes de Paulo, de Apolo e de Pedro (1Cor 1,12; 4,6); 4. Mentalidade grega em choque com a mentalidade judaica: o conceito de autoridade do grego é mais ``democrático'' (vem por discussão aberta), e o do judeu é mais ``tradicional'' (vem por tradição), o que foi uma das causas do conflito que havia entre Paulo e a comunidade de Corinto (2Cor 10,8-11; 12,11-18; 13,2-4); 5. Os cristãos vindos do judaísmo tinham chegado ao ponto de tentar destruir o trabalho dos cristãos vindos do paganismo: eram os ``falsos irmãos'' (Gl 2,4-5; 6,12-13; 1Ts 2,14-16); 6. Brigas pessoais de Paulo com Barnabé por causa de Marcos (At 15,37-39), e de Paulo com Pedro por causa da linha diferente (Gl 2,11-14); 7.

Mentalidade grega que não conseguia aceitar a ressurreição (At 17,32; 1Cor 15,12); 8. Falsos doutores espalhando confusão nas comunidades (1Tm 4,1-7); 9. Problemas com a religiosidade popular dos povos da Ásia Menor (At 14,11-18); 10. O problema do lugar da mulher nas comunidades: nem tudo estava claro (1Cor 11,3-12; 14,34-35; 1Tm 2,9-15); 11. O problema dos carismas, usados por alguns para se promover a si mesmos e não para construir a comunidade (1Cor 14,1-32); 12. Falta de respeito de uns para com a fragilidade da consciência dos outros (1Cor 8,7-13; Rm 14,1-15); 13. A pretensão de alguns de usar a liberdade em Cristo como pretexto para a libertinagem (1Cor 6,12-20; 5,1-13); 14. Divisão social e falta de ordem durante a realização da Ceia Eucarística (1Cor 11,17-34); 15. Vontade de alguns de seguirem o ideal grego da vida intelectual sem trabalhar com as próprias mãos, enquanto Paulo queria exatamente o contrário (2Ts 3,10-12).

Os problemas eram muitos e o povo das comunidades não era santo nem perfeito. Era espelho do que acontece hoje, onde gente bem intencionada de diferentes origens e mentalidades decide caminhar juntos. A fraternidade é um desafio!Grande parte destes problemas eram problemas de transição. As comunidades eram o novo modo de ser Povo de Deus. A transição do modo antigo para o modo novo não foi fácil. Paulo foi o instrumento para ajudar nesta transição sem a qual a igreja teria naufragado e jamais teria chegado até nós.

Foi a transição do mundo judaico para o mundo grego; do mundo rural da Palestina para o mundo urbano da Ásia Menor e da Grécia; do mundo mais ou menos harmonioso e coerente do judaísmo para o mundo pluralista das grandes cidades do império, cheias de conflitos; de uma situação de comunidades soltas, quase sem organização, para uma situação de comunidades bem organizadas; de uma igreja fechada, feita só de judeus convertidos, para uma igreja aberta, que acolhe a todos; do período dos apóstolos, ou seja, da primeira geração de líderes, para a igreja pós-apostólica da segunda geração de líderes que já não tinham tido contato com Jesus pessoalmente; de uma igreja, cuja doutrina e disciplina vinham em grande parte do judaísmo, para uma igreja que começava a elaborar e organizar a sua própria liturgia, doutrina e disciplina; de uma religião ligada às comunidades bem situadas dos judeus da diáspora, para uma religião mais ligada ao povo pobre das periferias urbanas das grandes cidades do império romano; de uma religião que cultivava o ideal da classe dominante, para uma religião que tinha a coragem de apresentar um novo ideal de vida ao povo trabalhador: ``ocupar-se das suas próprias coisas e trabalhar com as próprias mãos: assim não passarão mais necessidade de coisa alguma'' (1Ts 4,11-12).

40. Olhando para trás, como é que você agora enxerga a sua vida?

A vida de Paulo tem quatro períodos bem distintos. O primeiro vai do nascimento até aos 28 anos de idade. É o período antes da conversão, em que ele vive como israelita fiel e observante. O segundo vai desde a conversão aos 28 anos até o envio para a missão aos 41 anos. Período pouco conhecido. O terceiro vai dos 41 anos até aos 53 anos. É o período das viagens missionárias. O último vai dos 53 até à morte aos 63 anos de idade. É o período das prisões e da organização das comunidades.

Apesar de diferentes, estes quatro períodos tem algo em comum: é sempre o mesmo Paulo, a fé no mesmo Deus, a pertença ao mesmo povo de Deus; é a mesma vontade de ser fiel a Deus e à sua aliança, e de chegar à justiça e à paz com Deus.
Muitas coisas da vida de Paulo já foram vistas nesta entrevista, outras jamais poderão ser vistas, pois são para sempre o segredo só dele. Pouco sabemos do primeiro período. Quase nada sabemos do que se passou entre o momento da conversão aos 28 anos e o envio para a missão aos 41 anos. São 13 anos de silêncio! Provavelmente, foi neste período que ele teve as grandes experiências místicas de que fala numa das suas cartas (2Cor 12,1-10). Pouco ou nada sabemos do que aconteceu depois da primeira prisão em Roma até à sua morte. O período mais conhecido é o das viagens missionárias. Por aí se deduz que o interesse da Bíblia na pessoa de Paulo não é tanto por causa de Paulo enquanto Paulo, mas enquanto ele é o grande animador das comunidades.

A grande novidade que marcou a vida de Paulo foi a sua experiência de Jesus ressuscitado no caminho de Damasco: experiência profundamente pessoal e, ao mesmo tempo, essencialmente comunitária, pois ela só se tornou clara e manifesta no momento em que Ananias impôs as mãos em Paulo e o acolheu na comunidade dizendo: ``Paulo, meu irmão!'' (At 9,17).
A experiência no caminho de Damasco foi como um diamante lapidado que recebe a luz do sol. Através das suas muitas facetas, ele fraciona a luz em múltiplas cores e dela revela, assim, as diferentes qualidades. A luz do sol é Deus que se fez presente na vida de Paulo.
O diamante é a experiência de Jesus ressuscitado. As suas inúmeras facetas fracionam a luz e dela revela as infinitas qualidades: experiência da fidelidade de Deus (2Cor 1,20); experiência da vitória sobre a morte (Cl 2,12-13; Ef 1,19-20; Rm 6,1-4); experiência do próprio nada (Rm 7,24); experiência da própria vocação e missão (Gl 1,15-16); experiência da paixão, morte e ressurreição de Cristo (Fil 3,10-11); experiência da sua pertença ao povo (Rm 9,1-5); identificação mística com Cristo (Gl 2,20); experiência profunda do amor gratuito de Deus (Rm 8,31-39)... Vale a pena fazer um levantamento e classificar todos os aspectos da experiência de Deus em Cristo, vivida por Paulo.

CONCLUSÃO: Qual a sua maior esperança?

Aqui desisto de responder. Teria que copiar a maior parte das cartas, pois tudo nelas fala de esperança. Para Paulo, Jesus é a esperança prometida e realizada do seu povo, após longos séculos de espera.

Em Jesus ressuscitado, ele encontrou a razão de ser do seu povo. Através da vida, morte e ressurreição de Jesus, o grande mistério do amor de Deus, confiado ao povo de Israel, se abriu para todos os povos. Foi esta a grande Boa Nova que Paulo descobriu em Jesus e que ele começou a transmitir no mundo inteiro.

Aquilo que apontou no horizonte do povo na época do exílio, o universalismo; aquilo que se esboçou timidamente na pequena comunidade pós-exílica e que foi retardado (mas conservado e protegido) por Esdras e Neemias; aquilo que os helenistas do tempo de Antíoco quiseram realizar por imposição autoritária e, em vez de realizar, estragaram mais ainda, provocando a reação justa e violenta dos Macabeus; aquilo que, desde o começo estava no chão do chamado, na semente do apelo, no rumo da vocação, tudo isto apareceu em Jesus Cristo !
Em Jesus desabrochou a esperança do povo judeu e, nela, se revelou a grande esperança da humanidade, o SIM de Deus às promessas e esperanças que estão no coração de todo ser humano, de todos os povos, sobretudo dos pobres.

Paulo, por uma graça especial de Deus, percebeu este mistério, esta imensa Boa Nova para toda a humanidade. Ela se instalou nele, e ele sofreu por ela. Foi a sua razão de ser! ``Pela graça de Deus sou o que sou; e sua graça dada a mim não foi estéril. Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo!'' (1Cor 15,10).